hoje não vos trago soluções sagazes. estas são só perguntas, desgostos e pensamentos que se me saíram à frente da câmara enquanto me maquilhava, e dos quais procurei tirar algum sentido escrevendo este artigo.
o (óbvio) contexto
os tempos sempre foram complicados. não vou ficar aqui sentada sobre o meu privilegiado traseiro europeu e fingir outra coisa. admito também, desde já, que não estou ciente de todos os males do mundo, apesar dos meus míseros esforços para me manter informada. sei de vários, e sinto-me em iguais partes frustrada, irada e impotente para saber o que fazer para ajudar.
não costumo embarcar em visões bilaterais redutoras do mundo. bom e mau, quente e frio… muitos males já foram feitos a título de “fazer a coisa certa” (de acordo com quem?), e fazer mal aos outros – directa ou indirectamente, física ou emocionalmente, financeiramente, seja o que for – é um negócio muito lucrativo. por vezes parece ser o mais lucrativo. um negócio sempre em crescimento, que sabe a um rodopio de “mais, mais. mais”. alimenta-se do pequeno egoísmo e da mesquinhez das pessoas, dos seus medos e frustrações, e atiça-as com promessas vãs, o suficiente para as manter na roda do hámster, mas nunca tanto que queiram libertar-se. mais do que outra coisa, mantém as pessoas suficientemente isoladas para não se darem conta do seu verdadeiro poder enquanto grupo. mas divago (como é costume).
já este mal… bem, este toca aqui mais perto – literalmente, para mim – e, sou franca, as possíveis consequências dos acontecimentos actuais estão a fazer uma festarola com a minha ansiedade. e eu nem sequer estou a ser directamente afectada pelo que está a acontecer… são tantos sentimentos ao mesmo tempo, há tantas coisas sérias em que nos concentrarmos, tanto por que nos sentirmos responsável, impotentes ou zangados.
porquê fazer vídeos de beleza agora, então?
pode soar a história lamechas (e acho que já falei disto antes, quando a pandemia começou), mas os vídeos do YouTube ajudaram-me imensamente quando tive uma depressão em 2019. sim, falo por um lado de fazer vídeos – coisa que não fui capaz de fazer durante um tempo, pelo que quando consegui voltar foi um importante marco, indício de uma melhoria da minha saúde mental. quando feito sem demasiada pressão, filmar e editar trazem-me alegria, e tenciono agarrar-me a essa alegria enquanto assim for. mas, e sobretudo, lembro-me claramente do tempo em que os vídeos me proporcionaram um escape: no princípio, um voz de fundo amiga a falar de coisas simples e “normais” quando não conseguia concentrar-me; e mais tarde a sensação de estar finalmente a voltar a ligar-me ao conteúdo que via. ajudaram-me efectivamente a manter-me fora da minha própria cabeça, fazendo-me sentir que havia qualquer coisa “normal” para a qual voltar, de certa forma. pessoas apaixonadas pelos seus ofícios e processos criativos sempre foram a minha cena.
como actriz, entretenho os outros. é esse o meu ganha-pão. e encaro esta ocupação como, sim, um serviço público. não é difícil transpor isso para os vídeos que faço por brincadeira. se eu conseguir proporcionar esse pedacinho de escape, replicar esse sentimento de distração e companhia para nem que seja um espectador que está a passar por qualquer tipo de dificuldade, já valeu a pena.
e não esqueçamos que qualquer forma de auto-expressão pode ser um acto de contestação, capacitação, individualidade, assertividade, logo… liberdade. maquilhagem incluída.
e prontos.
sim, e
tudo isto para dizer que podemos ser muitas coisas ao mesmo tempo. podemos sentir muitas coisas ao mesmo tempo, algumas das quais colidem com ou contradizem outras, até. temos a sorte de não estar nas situações terríveis que testemunhamos todos os dias (e todas as outras ignoradas pela comunicação social), mas podemos ainda assim ter empatia e sentir o coração feito num oito. podemos viver as nossas vidas normais, soltar uma gargalhada descomplicada com amigos, e ao mesmo tempo sentir culpa, ou mesmo sentir um quê de catástrofe iminente (justificado ou não, não interessa. está lá).
podemos ralar-nos com o que se está a passar à vista de todos e ao mesmo tempo começar a compreender situações de que não nos apercebíamos, ou às quais, por quaisquer motivos, não prestávamos atenção. podemos ficar divididos entre acreditar num mundo melhor e constatar que todo o “progresso” que julgávamos ter feito é pouco mais do que fogo de vista… ou, quando muito, que assenta sobre fundações profundamente frágeis, à mercê de qualquer sopro. assim costumam ser as coisas mais preciosas.
detesto o whataboutism (ou, em tuga, o “sim, mas”). nega uma coisa a favor de outra. é inútil, já que as coisas não desaparecem só porque escolhemos ignorá-las ou tirar-lhes prioridade. nem nos devemos dar ao luxo de deixar de ver o contexto todo só porque nos debruçamos sobre um aspecto.
a verdade é que muitas muitas coisas no mundo já estavam mal. muitas muitas coisas estão mal ao mesmo tempo, e convém fazermos as pazes com essa noção. esta é, sem dúvida, mais uma gota putrefacta na fossa séptica de desespero e escória humana. não é a melhor altura para aquelas hashtags de “fé na humanidade restaurada” se olharmos para o panorama completo.
é terrível assistir a tanta coisa horrível, sabendo que estamos só a molhar os pés num mar de repercussões, cheio de “e ses” desconhecidos a rastejar debaixo da superfície – muito menos me vou pôr com pretensões de achar que sei o que é de facto viver a coisa em si. parece que os nossos corações são capazes de se partir infinitamente, e ao mesmo tempo parece que estão num ponto em que não aguentam nem mais um suspiro.
por um lado, entendo que não queremos sentir-nos assoberbados, e portanto é um mecanismo de defesa natural; por outro lado, algumas situações podem desafiar-nos a mudar as nossas perspectivas, o que, quando já estamos zangados, assustados e cansados, é um pedido e pêras.
por isso… uma abordagem “sim, e” parece-me muito mais equilibrada.
mesmo que não estejamos no meio da acção, sentirmo-nos assoberbados é o normal: pela onda de choque de algo novo contra o qual não podemos nada; pelo facto de tudo ser tão profundamente confuso e de não haver nem verdades absolutas, nem bem e mal absolutos, nem certo e errado absolutos em que possamos apoiar-nos, mas só as águas turvas da guerra, através das quais, devemos confessar com humildade, não conseguimos ver como deve ser; o sofrimento generalizado e sem fim, o luto, o desperdício de vidas, de potencial para fazermos melhor, para melhorar o que estava a correr bem; a antecipação sufocante das grandes e pequenas consequências, tanto as que estão a desenrolar-se como as que estão por vir; e ainda lidarmos com os nossos próprios vieses, desvendarmos o nosso próprio rol de ângulos mortos, as nossas falhas pessoais, e sentirmo-nos responsáveis e impotentes perante isto tudo.
queremos desligar para nos mantermos sãos e sentimo-nos mal quando o fazemos. queremos escolher uma coisa com a qual nos preocuparmos de cada vez e invariavelmente sentimos que deixamos o raio do mundo ficar mal.
sim, e.
somos muito complexos, cheios de contradições, e a maior parte de nós está a tentar fazer o melhor que pode com a informação e as ferramentas de que dispõe. e podemos aprender a fazer melhor. permitir a nós próprios e aos outros ser-se vulnerável e bondoso deveria ser O Novo Corajoso, em vez de toda esta treta competitiva de macho, que se aproveita de e espezinha tudo o que se atravessa à sua frente, espezinhando até quem estivesse só na sua vidinha. no meu mundo ideal, teríamos a humildade para admitir que cometemos erros (tanto em acções como em julgamentos), puxar da determinação para aprender com eles e fazer o nosso melhor para não os repetirmos, e defender briosamente quem quer que seja injustiçado. permitir-nos-íamos não tomar a bondade por fraqueza.
pá, até lá, às vezes tudo o que podemos fazer é respirar. e, sim, pespegar maquilhagem nas fuças.